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28 de nov. de 2012

MONISMO OU VAZIO MORAL?


Marcelo Andrade

Uma das características das sociedades contemporâneas é a possibilidade de contato entre diferentes grupos e culturas. Neste sentido, são muitos os modos de compreender e interpretar o certo e o errado, isto é, os códigos morais. É importante notar que estes códigos morais podem estar presentes em um mesmo grupo social ou em diferentes grupos que se relacionam entre si. É nesse contexto que surge o embate entre o que denominamos universalismo ético, ou seja, a defesa da existência de alguns valores que deveriam ser aceitos como referência para todos os códigos morais, e o relativismo ético, que defende que cada cultura possui seus valores particulares, os quais devem ser reconhecidos como válidos e tomados como referência para orientar o agir de seus membros.

O monismo moral
Para a filósofa espanhola Adela Cortina[1], uma sociedade pode possuir distintas maneiras de conceber e organizar os códigos morais. Há sociedades que são moralmente “monistas”, isto é, possuem apenas um código moral, e há sociedades nas quais convivem distintos códigos morais. Para a autora, as sociedades que historicamente superaram o monismo moral, geralmente imposto de maneira autoritária, encontraram-se em três situações distintas, a saber: (1) “vazio moral”; (2) “politeísmo moral” e (3) “pluralismo moral”.
Em nossa discussão vamos partir do pressuposto de que hoje é praticamente impossível entender uma sociedade que se queira democrática orientada somente por um código moral. O monismo moral só é possível em sociedades totalmente homogêneas – ainda existem tais sociedades? – ou em sociedades nas quais um código moral é imposto a todos como o único possível, tal como costuma acontecer nos sistemas totalitários.
Assim foi com o nazismo de Hitler na Alemanha, com o nacional catolicismo de Franco na Espanha, com o chamado marxismo de Estado de Stalin na União Soviética, assim como em quase todos os sistemas autoritários que temos experimentado em distintas partes do mundo. No caso da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, a falta de apoio institucional explícito de uma religião ou de um partido político como eixo fundamental do golpe abriu espaço para um código moral elaborado nos quartéis, a “Doutrina de Segurança Nacional”, que foi transmitida – em escolas, universidades e meios de comunicação – como uma “moral cívica”, centrada numa suposta ordem social, num progresso científico artificialmente neutro, num duvidoso desenvolvimentismo econômico e, por fim, num civismo forçosamente passivo.
No mundo de hoje, um monismo moral só se dá de maneira imposta, em sistemas autoritários. É certo que o monismo moral, tal como as ditaduras, não conseguem durar para sempre, ainda que durem tempos longos demais. As ditaduras, cedo ou tarde, caem – não de maduras, mas por serem insuportavelmente podres – e com elas se vão, afortunadamente, além dos ditadores, seus códigos morais, que são sempre a tentativa de impor uma norma acrítica, irreflexiva e um nível de participação cidadã nulo ou bastante passivo. Por exemplo, os recentes acontecimentos nos países do Norte da África, denominados de “Primavera Árabe”, poderiam ser entendidos como uma reação ao “monismo moral”, instituído por governos autoritários que impuseram um código moral como o único possível.
O filósofo inglês John Locke[2] já nos advertia que um código moral (religioso, civil, ideológico ou partidário) só pode ser realmente aceito como opção pessoal e intransferível, razão pela qual é impossível impor um código moral sem conseqüências posteriores, tais como: revoltas, apatia moral ou negação do código. Um código moral deve ser apresentado por seus formuladores (igreja, partido, movimento etc.) e livremente aceito por aqueles que sob tal código optem viver. Daí, o valor imprescindível da tolerância recíproca entre os diferentes códigos morais como base para se construir uma alternativa que supere a situação de monismo moral.
Para a Adela Cortina, quando uma determinada sociedade supera o monismo moral, geralmente, passa por três etapas: vazio, politeísmo ou pluralismo moral. A autora defende que a primeira alternativa (vazio moral) não se sustenta na prática, já que é impossível uma pessoa ou grupo não ter um código moral. A segunda (politeísmo), ainda que possível não é desejada, pois instaura uma impossibilidade de comunicação entre os diferentes códigos presentes na sociedade. A terceira alternativa (pluralismo) se apresenta como um projeto que merece investimento, porque responde melhor ao respeito pela diversidade de códigos. Vejamos cada uma dessas alternativas com mais detalhes.

O vazio moral
A situação de vazio moral se caracterizaria pela negação de todo e qualquer código e uma suposta alternativa de viver sem nenhuma norma ou regra moral que oriente a ação humana, tendo em vista a imperfeição de todas as regras. Esta situação é insustentável porque é impossível uma sociedade humana sem valores morais, sem um projeto hierarquizador de valores que oriente a organização, a manutenção e a continuidade da própria sociedade. Uma sociedade sem moral é tão impossível quanto uma pessoal amoral, ou seja, situada para além do bem e do mal. Um ser humano sempre opta por uns valores e não por outros na hora de orientar sua ação, mas nunca carece totalmente de uma orientação moral.
Podemos considerar que o vazio moral seja uma ausência de julgamento sobre o que é certo ou errado, não importando qual valor orienta uma determinada ação. Por exemplo, não podemos considerar que seja melhor uma pessoa que considere que não há diferença entre ser ou não racista e outra que, conscientemente, escolhe o valor da igualdade entre os diferentes grupos étnicos e condena o racismo. A indiferença pode propiciar decisões equivocadas e desrespeitosas da dignidade humana. Assim, temos que escolher qual é o nosso código moral, por mais imperfeito que ele seja; e nunca negar a sua inexistência.


[1] CORTINA, Adela. Hasta um pueblo de demônios: ética publica e sociedad. Madrid: Taurus, 1998.
[2] LOCKE, John. Carta acerca da tolerância. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

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