Marcelo Andrade
Uma das características
das sociedades contemporâneas é a possibilidade de contato entre diferentes
grupos e culturas. Neste sentido, são muitos os modos de compreender e
interpretar o certo e o errado, isto é, os códigos morais. É importante notar
que estes códigos morais podem estar presentes em um mesmo grupo social ou em
diferentes grupos que se relacionam entre si. É nesse contexto que surge o
embate entre o que denominamos universalismo
ético, ou seja, a defesa da existência de alguns valores que deveriam ser
aceitos como referência para todos os códigos morais, e o relativismo ético, que defende que cada cultura possui seus valores
particulares, os quais devem ser reconhecidos como válidos e tomados como
referência para orientar o agir de seus membros.
O
monismo moral
Para a filósofa
espanhola Adela Cortina[1],
uma sociedade pode possuir distintas maneiras de conceber e organizar os
códigos morais. Há sociedades que são moralmente “monistas”, isto é, possuem apenas um código moral, e há sociedades nas quais convivem distintos códigos morais. Para a autora,
as sociedades que historicamente superaram o monismo moral, geralmente imposto
de maneira autoritária, encontraram-se em três situações distintas, a saber:
(1) “vazio moral”; (2) “politeísmo moral” e (3) “pluralismo
moral”.
Em nossa discussão vamos
partir do pressuposto de que hoje é praticamente impossível entender uma
sociedade que se queira democrática orientada somente por um código moral. O
monismo moral só é possível em sociedades totalmente homogêneas – ainda existem
tais sociedades? – ou em sociedades nas quais um código moral é imposto a todos
como o único possível, tal como costuma acontecer nos sistemas totalitários.
Assim foi com o nazismo
de Hitler na Alemanha, com o nacional catolicismo de Franco na Espanha, com o
chamado marxismo de Estado de Stalin na União Soviética, assim como em quase
todos os sistemas autoritários que temos experimentado em distintas partes do
mundo. No caso da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e 1985, a falta de apoio
institucional explícito de uma religião ou de um partido político como eixo
fundamental do golpe abriu espaço para um código moral elaborado nos quartéis,
a “Doutrina de Segurança Nacional”, que foi transmitida – em escolas,
universidades e meios de comunicação – como uma “moral cívica”, centrada
numa suposta ordem social, num progresso científico artificialmente neutro, num
duvidoso desenvolvimentismo econômico e, por fim, num civismo forçosamente passivo.
No mundo de hoje, um
monismo moral só se dá de maneira imposta, em sistemas autoritários. É certo
que o monismo moral, tal como as ditaduras, não conseguem durar para sempre,
ainda que durem tempos longos demais. As ditaduras, cedo ou tarde, caem – não
de maduras, mas por serem insuportavelmente podres – e com elas se vão,
afortunadamente, além dos ditadores, seus códigos morais, que são sempre a
tentativa de impor uma norma acrítica, irreflexiva e um nível de participação
cidadã nulo ou bastante passivo. Por exemplo, os recentes acontecimentos nos
países do Norte da África, denominados de “Primavera Árabe”, poderiam ser
entendidos como uma reação ao “monismo moral”, instituído por governos
autoritários que impuseram um código moral como o único possível.
O filósofo inglês John
Locke[2] já
nos advertia que um código moral (religioso, civil, ideológico ou partidário)
só pode ser realmente aceito como opção pessoal e intransferível, razão pela
qual é impossível impor um código moral sem conseqüências posteriores, tais
como: revoltas, apatia moral ou negação do código. Um código moral deve ser
apresentado por seus formuladores (igreja, partido, movimento etc.) e
livremente aceito por aqueles que sob tal código optem viver. Daí, o valor
imprescindível da tolerância recíproca entre os diferentes códigos morais como
base para se construir uma alternativa que supere a situação de monismo moral.
Para a Adela Cortina,
quando uma determinada sociedade supera o monismo moral, geralmente, passa por
três etapas: vazio, politeísmo ou pluralismo moral. A autora defende que a primeira alternativa (vazio moral) não se sustenta na prática, já que é impossível
uma pessoa ou grupo não ter um código moral. A segunda (politeísmo), ainda que possível não é desejada, pois instaura uma
impossibilidade de comunicação entre os diferentes códigos presentes na
sociedade. A terceira alternativa (pluralismo)
se apresenta como um projeto que merece investimento, porque responde melhor ao
respeito pela diversidade de códigos. Vejamos cada uma dessas
alternativas com mais detalhes.
O
vazio moral
A situação de vazio
moral se caracterizaria pela negação de todo e qualquer código e uma suposta
alternativa de viver sem nenhuma norma ou regra moral que oriente a ação
humana, tendo em vista a imperfeição de todas as regras. Esta situação é
insustentável porque é impossível uma sociedade humana sem valores morais, sem
um projeto hierarquizador de valores que oriente a organização, a manutenção e
a continuidade da própria sociedade. Uma sociedade sem moral é tão impossível
quanto uma pessoal amoral, ou seja, situada para além do bem e do mal. Um ser
humano sempre opta por uns valores e não por outros na hora de orientar sua
ação, mas nunca carece totalmente de uma orientação moral.
Podemos considerar que o
vazio moral seja uma ausência de julgamento sobre o que é certo ou errado, não
importando qual valor orienta uma determinada ação. Por exemplo, não podemos
considerar que seja melhor uma pessoa que considere que não há diferença entre
ser ou não racista e outra que, conscientemente, escolhe o valor da igualdade
entre os diferentes grupos étnicos e condena o racismo. A indiferença pode
propiciar decisões equivocadas e desrespeitosas da dignidade humana. Assim,
temos que escolher qual é o nosso código moral, por mais imperfeito que ele
seja; e nunca negar a sua inexistência.
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