Giuseppe Tosi[1]
Quando – após a experiência terrível dos horrores das
duas guerras mundiais, dos regimes liberticidas e totalitários, das tentativas “científicas”,
em escala industrial, de extermínios dos judeus e dos “povos inferiores”, época
que culminará com o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki – os
líderes políticos das grandes potências vencedoras criaram, em 26 de junho de 1945,
em São Francisco ,
a ONU (Organização das Nações Unidas) e confiaram-lhe a tarefa de evitar uma
terceira guerra mundial e de promover a paz entre as nações, consideraram que a
promoção dos “direitos naturais” do homem fosse a condição necessária para uma
paz duradoura. Por isso, um dos primeiros atos da Assembléia Geral das Nações
Unidas foi a proclamação, em 10 de dezembro de 1948, de uma Declaração
Universal dos Direitos Humanos, cujo primeiro artigo reza da seguinte
forma: “Todas as pessoas nascem livres
e iguais em dignidade e em direitos. São
dotadas de razão e de consciência e devem agir em relação umas às outras com
espírito de fraternidade”.
A declaração não esconde, desde o seu primeiro
artigo, a referência e a homenagem à tradição dos direitos naturais: “Todas as pessoas
nascem livres e iguais”. Ela pode
ser lida assim como uma revanche histórica do direito natural, uma
exemplificação do “eterno retorno do direito natural”, promovida pelos
políticos e diplomatas, na tentativa de encontrar um “amparo” contra a volta da
barbárie.
Além de reafirmar o caráter “natural” dos direitos,
os redatores desse artigo tiveram a clara intenção de reunir, numa única formulação,
as três palavras de ordem da Revolução Francesa de 1789: liberdade, igualdade e fraternidade. Norberto Bobbio (1992, p.
262) comenta assim este fato:
Considero um
sinal dos tempos o fato de que, para tornar sempre mais irreversível esta
radical transformação das relações políticas, convirjam, sem se contradizer, as
três grandes correntes do pensamento político moderno: o liberalismo, o socialismo
e o cristianismo social.
Neste sentido, a declaração reuniu as principais
correntes políticas contemporâneas, pelo menos ocidentais, na tentativa de encontrar
um ponto de consenso o mais amplo possível. A Declaração Universal reafirma o conjunto de direitos das revoluções
burguesas (direitos de liberdade, ou direitos
civis e políticos) e os estende a
uma série de sujeitos que, anteriormente, estavam deles excluídos (proíbe a
escravidão, proclama os direitos das mulheres, defende os direitos dos estrangeiros,
etc.); afirma, também, os direitos da tradição socialista (direitos de
igualdade, ou direitos econômicos e
sociais) e do cristianismo social (direitos
de solidariedade) e os estende aos direitos
culturais. Isto foi fruto de uma negociação entre os dois grandes blocos do
após-guerra, o bloco socialista – que defendia os direitos econômicos e sociais
– e o bloco capitalista – que defendia os direitos civis e políticos. Apesar
das divergências e da abstenção dos países socialistas, houve um certo consenso
sobre alguns princípios básicos, uma vez que a “Guerra Fria” ainda não estava
tão acirrada como nas décadas seguintes.
Após a Declaração, foram assinados pactos e
protocolos internacionais que compõem a Carta
Internacional dos Direitos do Homem. Entre eles, assinalamos:
∙
A Convenção
relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960);
∙
A Convenção
Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial
(1966);
∙
O Pacto
Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
(assinado por 118 Estados);
∙
O Pacto
Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, também de 1966 (assinado
por 115 Estados), e os dois Protocolos Facultativos de 1966 e 1989;
∙
A Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979);
∙
A Convenção
sobre os Direitos da Criança (1989);
∙
A Convenção para
proteção e promoção da diversidade de expressões culturais (2005).
Com
efeito, nunca se alcançou um verdadeiro acordo sobre os direitos fundamentais.
Se, na Declaração Universal de 1948, os blocos capitalista e socialista
chegaram a um consenso, durante a
“Guerra Fria” esse consenso foi sempre mais difícil. Quando, em 1966, se tratou
de assinar um pacto sobre os direitos humanos que transformasse os princípios
éticos da Declaração Universal em princípios jurídicos, os dois blocos se
separaram e foi preciso criar dois pactos. Grande parte dos países socialistas
não assinou o “Pacto dos direitos civis e políticos”, assim como grande parte
dos países capitalistas se recusou a assinar o “Pacto dos direitos econômicos e
sociais”, entre eles, os Estados Unidos que, ainda hoje, não reconhecem tais
direitos como “verdadeiros direitos”.
É oportuno também lembrar que a Declaração Universal foi
proclamada em plena vigência dos regimes coloniais, e que, como afirma Damião
Trindade: “Mesmo após subscreverem a
Carta de São Francisco e a declaração de 48, as velhas metrópoles colonialistas
continuaram remetendo tropas e armas para tentar esmagar as lutas de libertação
e, em praticamente todos os casos, só se retiraram após derrotados por esses
povos” (TRINDADE, 2003).
A partir desses documentos, a quantidade de direitos
se desenvolveu em três tendências:
1)
Universalização – em 1948, os
Estados que aderiram à Declaração Universal da ONU eram somente 48; hoje
atingem quase a totalidade de nações do mundo, isto é, 184 dos 191 países-membros
da comunidade internacional (CASSESE, 1994, p. 52). Inicia-se, assim, um
processo pelo qual os indivíduos estão- se transformando, de cidadãos de um
Estado, em cidadãos do mundo;
2)
Multiplicação – nos últimos
cinquenta anos, a ONU promoveu várias conferências específicas, que aumentaram
a quantidade de bens que precisava ser defendida: a natureza e o meio ambiente,
a identidade cultural dos povos e das minorias, o direito à comunicação e à
imagem;
3)
Diversificação – as Nações Unidas
também definiram melhor os sujeitos titulares dos direitos. A pessoa humana não
foi mais considerada de maneira abstrata e genérica, mas na sua especificidade
e nas suas diferentes maneiras de ser: homem, mulher, criança, idoso,
heterossexual, homossexual, saudável ou não, etc.
Esse
processo deu origem a quatro “gerações” de direitos:
a) a primeira
geração inclui os direitos civis e políticos: os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança pública, à
igualdade perante a lei; proibição da escravidão, da tortura, da prisão
arbitrária; o direito a um julgamento justo, o direito de habeas-corpus, o direito à privacidade do lar e ao respeito da
própria imagem pública, à garantia de direitos iguais entre homens e mulheres
no casamento, o direito de religião e de livre expressão do pensamento, à
liberdade de ir e vir dentro do País e entre os países, a asilo político, a ter
uma nacionalidade, à liberdade de imprensa e de informação, à liberdade de associação,
à liberdade de participação política direta ou indireta, o princípio da
soberania popular e as regras básicas da democracia: liberdade de formar
partidos, de votar e ser votado;
b) a segunda geração inclui os direitos
econômicos, sociais e culturais: o direito à seguridade social, o direito
ao trabalho e à segurança no trabalho, ao seguro contra o desemprego, a um
salário justo e satisfatório; proibição da discriminação salarial, o direito a
formar sindicatos, ao lazer e ao descanso remunerado, à proteção do Estado do
Bem-Estar Social, à proteção especial para a maternidade e a infância, à
educação pública gratuita e universal, a participar da vida cultural da comunidade
e a se beneficiar do progresso científico e artístico, à proteção aos direitos
autorais e às patentes científicas;
c)
a terceira geração inclui os direitos a uma nova
ordem internacional: direito a uma
ordem social e internacional, em que os direitos e liberdade estabelecidos na
Declaração possam ser plenamente realizados: o direito à paz, ao
desenvolvimento, a um ambiente natural sadio, etc. (FERREIRA FILHO, 1996, p.
57);
d) a quarta
geração: é uma categoria nova de
direitos, ainda em discussão, que se refere aos direitos das gerações futuras. Caberia
à atual geração uma obrigação, isto é, um compromisso de deixar para as
gerações futuras um mundo igual ou melhor ao que recebemos das gerações
anteriores. Isso implica discussões que envolvem todas as três gerações de
direitos, e a constituição de uma nova ordem econômica, política, jurídica
internacional.
Essa listagem é apenas indicativa, já que existe
controvérsia sobre a oportunidade de considerar como direitos “efetivos” os de terceira
e de quarta geração, porque não existe um poder que os garanta, assim como há
divergência quanto à lista dos direitos a serem incluídos nessas categorias.
Com efeito, não se trata simplesmente de “direitos”
no sentido estritamente jurídico da palavra, mas de um conjunto de “valores” que
implica várias dimensões (DIAS; TAVARES, 2001, p. 41-49):
Dimensão
ética. A Declaração afirma que
“todas as pessoas nascem livres e
iguais”. Isso indica o caráter natural
dos direitos: eles são inerentes à natureza de cada ser humano pelo
reconhecimento de sua intrínseca dignidade. Nesse sentido, tornam-se um conjunto
de valores éticos universais, que estão “acima” do nível estritamente jurídico,
e devem orientar a legislação dos Estados;
Dimensão jurídica. No momento em que os princípios contidos na
Declaração são especificados e determinados nos tratados, convenções
internacionais e protocolos, eles se tornam parte do direito internacional.
Esses tratados têm um valor e uma força jurídica quando assinados pelos
Estados; deixam, assim, de ser orientações éticas, ou de direito natural, para
se tornarem um conjunto de direitos
positivos que vinculam as relações internas e externas dos Estados,
assimilados e incorporados pelas Constituições e – mediante elas – por leis
ordinárias;
Dimensão
política. Enquanto conjunto de
normas jurídicas, os direitos humanos tornam-se critérios de orientação e de
implementação das políticas públicas institucionais nos vários setores. O Estado
assume, assim, o compromisso de ser o promotor do conjunto dos direitos
fundamentais, tanto do ponto de vista “negativo”, isto é, não interferindo na
esfera das liberdades individuais dos cidadãos, quanto do ponto de vista
“positivo”, implementando políticas que garantam a efetiva realização desses
direitos para todos. Nesse sentido, o Programa Nacional de Direitos Humanos, o Programa
Nacional de Educação em
Direitos Humanos , o Programa Nacional de Segurança Pública e
Direitos Humanos, são todas tentativas do governo e do Estado Brasileiro para
que os direitos humanos se tornem parte integrante das políticas públicas;
Dimensão
econômica. Sem a satisfação de um
mínimo de necessidades humanas básicas, isto é, sem a realização dos direitos econômicos
e sociais, não é possível o exercício dos direitos civis e políticos. O Estado,
portanto, não pode limitar-se à garantia dos direitos de liberdade, mas deve,
também, exercer um papel ativo na implementação dos direitos de igualdade;
Dimensão social. Não cabe somente ao Estado a implementação dos
direitos; também a sociedade civil organizada tem um papel importante na luta
pela efetivação dos direitos mediante movimentos sociais, sindicatos,
associações, centros de defesa e de educação, conselhos de direitos. É a luta
pela efetivação dos direitos humanos que vai levar esses direitos ao cotidiano
das pessoas e vai determinar o alcance que eles vão conseguir numa determinada
sociedade (LYRA, 1996);
Dimensão
cultural. Se os direitos humanos
implicam algo mais do que a mera dimensão jurídica, isso significa que é
preciso que eles encontrem um respaldo na cultura, na história, na tradição, nos
costumes de um povo e se tornem parte de sua identidade cultural e maneira de
ser. A realização dos direitos humanos é relativamente recente no Brasil e
precisa de certo tempo para se afirmar e pôr raízes no contexto brasileiro;
Dimensão
educativa. Afirmar que os direitos
humanos são direitos “naturais”, que as pessoas “nascem” livres e iguais, não
significa dizer que a consciência dos direitos seja algo espontâneo. O homem é
um ser que deve ser “educado” pela sociedade. A educação para a cidadania constitui,
portanto, uma das dimensões fundamentais para a efetivação dos direitos, tanto
na educação formal quanto na educação informal ou popular e nos meios de
comunicação (DIAS; TAVARES, 2001).
Essas reflexões pretendem mostrar o caráter complexo
dos direitos humanos, que implicam um conjunto de dimensões que devem estar
interligadas. O Código dos Direitos Humanos é uma nova ética mundial, um
conjunto de preceitos humanitários, sem mitos, embora inspirado nas grandes
ideias das religiões tradicionais do Ocidente e do Oriente e fortalecido pelas
contribuições do pensamento filosófico ocidental.
Nessa perspectiva, mais do que falar em “gerações” de
direitos, seria melhor afirmar a interconexão,
a indivisibilidade e a indissociabilidade de todas as
dimensões dos direitos, citadas acima. Elas não podem ser vistas, de fato, como
aspectos separados, mas como algo organicamente relacionado, de tal forma que
uma dimensão se integre e se realize com todas as outras; porque, ao final, o homem
é um só!
Como afirma o prof. Cançado Trindade (1998, p. 120):
Nunca é
demais ressaltar a importância de uma visão integral dos direitos humanos. As
tentativas de categorização de direitos, os projetos que tentaram – e ainda
tentam – privilegiar certos direitos às expensas dos demais, a indemonstrável
fantasia das “gerações de direitos”, têm prestado um desserviço à causa da
proteção internacional dos direitos humanos. Indivisíveis são todos os direitos
humanos, tomados em conjunto, como indivisível é o próprio ser humano, titular
desses direitos.
A tese da unidade e indissociabilidade dos direitos
humanos foi solenemente proclamada pela Conferência das Nações Unidas sobre
Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993.
Acreditamos, olhando o mundo com o otimismo da
vontade e o pessimismo da razão – como dizia Gramsci –, que os direitos da
pessoa constituem um terreno não simplesmente tático, mas estratégico para a
luta política de transformação da sociedade. Existe um movimento real,
concreto, histórico, amplo, universal de luta pelos direitos humanos no mundo
inteiro. É um movimento pluralista, polissêmico, vário, polêmico, divergente,
mas é um movimento histórico concreto, aliás, o único movimento – que se
conheça – que tem uma linguagem, uma abrangência, uma articulação, uma organização
que supera as fronteiras nacionais, tanto horizontalmente, por meio das redes,
quanto verticalmente: do bairro às Nações Unidas (ALVES, 1994).
A questão dos direitos humanos, hoje, entendida em
toda a sua complexidade, aponta para um espaço de u-topia, (ou melhor de
eu-topia, de bom-lugar), funciona como uma ideia reguladora, um horizonte que
nunca poderá ser alcançado porque está sempre mais além, mas sem o qual não
saberíamos sequer para onde ir.
[1]
Doutor em Filosofia pela Universidade de Pádua-Itália (1999). Professor do
Departamento de Filosofia e Coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos
Humanos da Universidade Federal da Paraíba.
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