Subscribe:

28 de set. de 2012

O SIGNIFICADO E AS CONSEQUÊNCIAS DA DECLARAÇÃO DE 1948


Giuseppe Tosi[1]
Quando – após a experiência terrível dos horrores das duas guerras mundiais, dos regimes liberticidas e totalitários, das tentativas “científicas”, em escala industrial, de extermínios dos judeus e dos “povos inferiores”, época que culminará com o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki – os líderes políticos das grandes potências vencedoras criaram, em 26 de junho de 1945, em São Francisco, a ONU (Organização das Nações Unidas) e confiaram-lhe a tarefa de evitar uma terceira guerra mundial e de promover a paz entre as nações, consideraram que a promoção dos “direitos naturais” do homem fosse a condição necessária para uma paz duradoura. Por isso, um dos primeiros atos da Assembléia Geral das Nações Unidas foi a proclamação, em 10 de dezembro de 1948, de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo primeiro artigo reza da seguinte forma: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotadas de razão e de consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.
A declaração não esconde, desde o seu primeiro artigo, a referência e a homenagem à tradição dos direitos naturais: “Todas as pessoas nascem livres e iguais”. Ela pode ser lida assim como uma revanche histórica do direito natural, uma exemplificação do “eterno retorno do direito natural”, promovida pelos políticos e diplomatas, na tentativa de encontrar um “amparo” contra a volta da barbárie.
Além de reafirmar o caráter “natural” dos direitos, os redatores desse artigo tiveram a clara intenção de reunir, numa única formulação, as três palavras de ordem da Revolução Francesa de 1789: liberdade, igualdade e fraternidade. Norberto Bobbio (1992, p. 262) comenta assim este fato:
Considero um sinal dos tempos o fato de que, para tornar sempre mais irreversível esta radical transformação das relações políticas, convirjam, sem se contradizer, as três grandes correntes do pensamento político moderno: o liberalismo, o socialismo e o cristianismo social.
Neste sentido, a declaração reuniu as principais correntes políticas contemporâneas, pelo menos ocidentais, na tentativa de encontrar um ponto de consenso o mais amplo possível. A Declaração Universal reafirma o conjunto de direitos das revoluções burguesas (direitos de liberdade, ou direitos civis e políticos) e os estende a uma série de sujeitos que, anteriormente, estavam deles excluídos (proíbe a escravidão, proclama os direitos das mulheres, defende os direitos dos estrangeiros, etc.); afirma, também, os direitos da tradição socialista (direitos de igualdade, ou direitos econômicos e sociais) e do cristianismo social (direitos de solidariedade) e os estende aos direitos culturais. Isto foi fruto de uma negociação entre os dois grandes blocos do após-guerra, o bloco socialista – que defendia os direitos econômicos e sociais – e o bloco capitalista – que defendia os direitos civis e políticos. Apesar das divergências e da abstenção dos países socialistas, houve um certo consenso sobre alguns princípios básicos, uma vez que a “Guerra Fria” ainda não estava tão acirrada como nas décadas seguintes.
Após a Declaração, foram assinados pactos e protocolos internacionais que compõem a Carta Internacional dos Direitos do Homem. Entre eles, assinalamos:
          A Convenção relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino (1960);
          A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1966);
          O Pacto Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (assinado por 118 Estados);
          O Pacto Internacional Relativo aos Direitos Civis e Políticos, também de 1966 (assinado por 115 Estados), e os dois Protocolos Facultativos de 1966 e 1989;
          A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979);
          A Convenção sobre os Direitos da Criança (1989);
          A Convenção para proteção e promoção da diversidade de expressões culturais (2005).
Com efeito, nunca se alcançou um verdadeiro acordo sobre os direitos fundamentais. Se, na Declaração Universal de 1948, os blocos capitalista e socialista chegaram a um consenso, durante  a “Guerra Fria” esse consenso foi sempre mais difícil. Quando, em 1966, se tratou de assinar um pacto sobre os direitos humanos que transformasse os princípios éticos da Declaração Universal em princípios jurídicos, os dois blocos se separaram e foi preciso criar dois pactos. Grande parte dos países socialistas não assinou o “Pacto dos direitos civis e políticos”, assim como grande parte dos países capitalistas se recusou a assinar o “Pacto dos direitos econômicos e sociais”, entre eles, os Estados Unidos que, ainda hoje, não reconhecem tais direitos como “verdadeiros direitos”.
É oportuno também lembrar que a Declaração Universal foi proclamada em plena vigência dos regimes coloniais, e que, como afirma Damião Trindade: “Mesmo após subscreverem a Carta de São Francisco e a declaração de 48, as velhas metrópoles colonialistas continuaram remetendo tropas e armas para tentar esmagar as lutas de libertação e, em praticamente todos os casos, só se retiraram após derrotados por esses povos” (TRINDADE, 2003).
A partir desses documentos, a quantidade de direitos se desenvolveu em três tendências:
1) Universalização – em 1948, os Estados que aderiram à Declaração Universal da ONU eram somente 48; hoje atingem quase a totalidade de nações do mundo, isto é, 184 dos 191 países-membros da comunidade internacional (CASSESE, 1994, p. 52). Inicia-se, assim, um processo pelo qual os indivíduos estão- se transformando, de cidadãos de um Estado, em cidadãos do mundo;
2) Multiplicação – nos últimos cinquenta anos, a ONU promoveu várias conferências específicas, que aumentaram a quantidade de bens que precisava ser defendida: a natureza e o meio ambiente, a identidade cultural dos povos e das minorias, o direito à comunicação e à imagem;
3) Diversificação – as Nações Unidas também definiram melhor os sujeitos titulares dos direitos. A pessoa humana não foi mais considerada de maneira abstrata e genérica, mas na sua especificidade e nas suas diferentes maneiras de ser: homem, mulher, criança, idoso, heterossexual, homossexual, saudável ou não, etc.
Esse processo deu origem a quatro “gerações” de direitos:
a)     a primeira geração inclui os direitos civis e políticos: os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à segurança pública, à igualdade perante a lei; proibição da escravidão, da tortura, da prisão arbitrária; o direito a um julgamento justo, o direito de habeas-corpus, o direito à privacidade do lar e ao respeito da própria imagem pública, à garantia de direitos iguais entre homens e mulheres no casamento, o direito de religião e de livre expressão do pensamento, à liberdade de ir e vir dentro do País e entre os países, a asilo político, a ter uma nacionalidade, à liberdade de imprensa e de informação, à liberdade de associação, à liberdade de participação política direta ou indireta, o princípio da soberania popular e as regras básicas da democracia: liberdade de formar partidos, de votar e ser votado;
b)      a segunda geração inclui os direitos econômicos, sociais e culturais: o direito à seguridade social, o direito ao trabalho e à segurança no trabalho, ao seguro contra o desemprego, a um salário justo e satisfatório; proibição da discriminação salarial, o direito a formar sindicatos, ao lazer e ao descanso remunerado, à proteção do Estado do Bem-Estar Social, à proteção especial para a maternidade e a infância, à educação pública gratuita e universal, a participar da vida cultural da comunidade e a se beneficiar do progresso científico e artístico, à proteção aos direitos autorais e às patentes científicas;
c)      a terceira geração inclui os direitos a uma nova ordem internacional: direito a uma ordem social e internacional, em que os direitos e liberdade estabelecidos na Declaração possam ser plenamente realizados: o direito à paz, ao desenvolvimento, a um ambiente natural sadio, etc. (FERREIRA FILHO, 1996, p. 57);
d)     a quarta geração: é uma categoria nova de direitos, ainda em discussão, que se refere aos direitos das gerações futuras. Caberia à atual geração uma obrigação, isto é, um compromisso de deixar para as gerações futuras um mundo igual ou melhor ao que recebemos das gerações anteriores. Isso implica discussões que envolvem todas as três gerações de direitos, e a constituição de uma nova ordem econômica, política, jurídica internacional.
Essa listagem é apenas indicativa, já que existe controvérsia sobre a oportunidade de considerar como direitos “efetivos” os de terceira e de quarta geração, porque não existe um poder que os garanta, assim como há divergência quanto à lista dos direitos a serem incluídos nessas categorias.
Com efeito, não se trata simplesmente de “direitos” no sentido estritamente jurídico da palavra, mas de um conjunto de “valores” que implica várias dimensões (DIAS; TAVARES, 2001, p. 41-49):
Dimensão ética. A Declaração afirma que “todas as pessoas nascem livres e iguais”. Isso indica o caráter natural dos direitos: eles são inerentes à natureza de cada ser humano pelo reconhecimento de sua intrínseca dignidade. Nesse sentido, tornam-se um conjunto de valores éticos universais, que estão “acima” do nível estritamente jurídico, e devem orientar a legislação dos Estados;
Dimensão jurídica. No momento em que os princípios contidos na Declaração são especificados e determinados nos tratados, convenções internacionais e protocolos, eles se tornam parte do direito internacional. Esses tratados têm um valor e uma força jurídica quando assinados pelos Estados; deixam, assim, de ser orientações éticas, ou de direito natural, para se tornarem um conjunto de direitos positivos que vinculam as relações internas e externas dos Estados, assimilados e incorporados pelas Constituições e – mediante elas – por leis ordinárias;
Dimensão política. Enquanto conjunto de normas jurídicas, os direitos humanos tornam-se critérios de orientação e de implementação das políticas públicas institucionais nos vários setores. O Estado assume, assim, o compromisso de ser o promotor do conjunto dos direitos fundamentais, tanto do ponto de vista “negativo”, isto é, não interferindo na esfera das liberdades individuais dos cidadãos, quanto do ponto de vista “positivo”, implementando políticas que garantam a efetiva realização desses direitos para todos. Nesse sentido, o Programa Nacional de Direitos Humanos, o Programa Nacional de Educação em Direitos Humanos, o Programa Nacional de Segurança Pública e Direitos Humanos, são todas tentativas do governo e do Estado Brasileiro para que os direitos humanos se tornem parte integrante das políticas públicas;
Dimensão econômica. Sem a satisfação de um mínimo de necessidades humanas básicas, isto é, sem a realização dos direitos econômicos e sociais, não é possível o exercício dos direitos civis e políticos. O Estado, portanto, não pode limitar-se à garantia dos direitos de liberdade, mas deve, também, exercer um papel ativo na implementação dos direitos de igualdade;
Dimensão social. Não cabe somente ao Estado a implementação dos direitos; também a sociedade civil organizada tem um papel importante na luta pela efetivação dos direitos mediante movimentos sociais, sindicatos, associações, centros de defesa e de educação, conselhos de direitos. É a luta pela efetivação dos direitos humanos que vai levar esses direitos ao cotidiano das pessoas e vai determinar o alcance que eles vão conseguir numa determinada sociedade (LYRA, 1996);
Dimensão cultural. Se os direitos humanos implicam algo mais do que a mera dimensão jurídica, isso significa que é preciso que eles encontrem um respaldo na cultura, na história, na tradição, nos costumes de um povo e se tornem parte de sua identidade cultural e maneira de ser. A realização dos direitos humanos é relativamente recente no Brasil e precisa de certo tempo para se afirmar e pôr raízes no contexto brasileiro;
Dimensão educativa. Afirmar que os direitos humanos são direitos “naturais”, que as pessoas “nascem” livres e iguais, não significa dizer que a consciência dos direitos seja algo espontâneo. O homem é um ser que deve ser “educado” pela sociedade. A educação para a cidadania constitui, portanto, uma das dimensões fundamentais para a efetivação dos direitos, tanto na educação formal quanto na educação informal ou popular e nos meios de comunicação (DIAS; TAVARES, 2001).
Essas reflexões pretendem mostrar o caráter complexo dos direitos humanos, que implicam um conjunto de dimensões que devem estar interligadas. O Código dos Direitos Humanos é uma nova ética mundial, um conjunto de preceitos humanitários, sem mitos, embora inspirado nas grandes ideias das religiões tradicionais do Ocidente e do Oriente e fortalecido pelas contribuições do pensamento filosófico ocidental.
Nessa perspectiva, mais do que falar em “gerações” de direitos, seria melhor afirmar a interconexão, a indivisibilidade e a indissociabilidade de todas as dimensões dos direitos, citadas acima. Elas não podem ser vistas, de fato, como aspectos separados, mas como algo organicamente relacionado, de tal forma que uma dimensão se integre e se realize com todas as outras; porque, ao final, o homem é um só!
Como afirma o prof. Cançado Trindade (1998, p. 120):
Nunca é demais ressaltar a importância de uma visão integral dos direitos humanos. As tentativas de categorização de direitos, os projetos que tentaram – e ainda tentam – privilegiar certos direitos às expensas dos demais, a indemonstrável fantasia das “gerações de direitos”, têm prestado um desserviço à causa da proteção internacional dos direitos humanos. Indivisíveis são todos os direitos humanos, tomados em conjunto, como indivisível é o próprio ser humano, titular desses direitos.
A tese da unidade e indissociabilidade dos direitos humanos foi solenemente proclamada pela Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, em 1993.
Acreditamos, olhando o mundo com o otimismo da vontade e o pessimismo da razão – como dizia Gramsci –, que os direitos da pessoa constituem um terreno não simplesmente tático, mas estratégico para a luta política de transformação da sociedade. Existe um movimento real, concreto, histórico, amplo, universal de luta pelos direitos humanos no mundo inteiro. É um movimento pluralista, polissêmico, vário, polêmico, divergente, mas é um movimento histórico concreto, aliás, o único movimento – que se conheça – que tem uma linguagem, uma abrangência, uma articulação, uma organização que supera as fronteiras nacionais, tanto horizontalmente, por meio das redes, quanto verticalmente: do bairro às Nações Unidas (ALVES, 1994).
A questão dos direitos humanos, hoje, entendida em toda a sua complexidade, aponta para um espaço de u-topia, (ou melhor de eu-topia, de bom-lugar), funciona como uma ideia reguladora, um horizonte que nunca poderá ser alcançado porque está sempre mais além, mas sem o qual não saberíamos sequer para onde ir.



[1] Doutor em Filosofia pela Universidade de Pádua-Itália (1999). Professor do Departamento de Filosofia e Coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba.

0 comentários: