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6 de out. de 2012

DIFERENÇA COMO DIREITO NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE


Quando perdemos o direito de ser diferentes, perdemos o privilégio de ser livres (Charles Evans Hughes).

Segundo Japiassú e Marcondes[1], a diferença é uma “relação de alteridade existente entre duas coisas que possuem elementos idênticos”. Neste sentido só é possível afirmar ou apontar nossas diferenças a partir do que possuímos em comum, ou seja, é devido ao fato de possuirmos muitas características comuns, enquanto seres humanos que percebemos que também somos diferentes. Este raciocínio nos deveria obrigar a entender as diferenças, sejam biológicas, sociais ou culturais como elementos que constituem a nossa humanidade, ao invés de serem colocadas como obstáculo para a convivência em uma comunidade comum de humanos.
Em seu livro “Multiculturalismo”, Andrea Semprini[2], questiona o modo como a diferença é concebida na contemporaneidade:
Como se pode tratar a diferença? A diferença é um fator de enriquecimento ou, ao contrário, um empobrecimento? Um trunfo ou uma ameaça? Para chegarmos a uma resposta, importa relembrar que a diferença não é simplesmente, ou unicamente, um conceito filosófico, uma forma semântica. A diferença é antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e social, que os homens empregam em suas práticas cotidianas e encontra-se inserida no processo histórico. Assim, é impossível estudar a diferença desconsiderando-se as mudanças e as evoluções que fazem dessa ideia uma realização dinâmica. Constatada em determinado momento e sociedade, qualquer diferença é, ao mesmo tempo, um resultado e uma condição transitória. Resultado, se consideramos o passado e privilegiamos o processo que resultou em diferença. Mas ela é, igualmente, um estado transitório, se privilegiamos a continuidade dinâmica, que vai necessariamente alterar este estado no sentido de uma configuração posterior.
Para os autores de “O jogo das diferenças”[3], são muitos os mecanismos pelos quais as diferenças são produzidas:
Não se pode perder de vista que as próprias sociedades criam, por meio de poderosos mecanismos, representações de si mesmas. Nesse sentido, podemos encontrar países como, por exemplo, os Estados Unidos e o Brasil que, apesar de todos os esforços para criarem uma unidade nacional em seus respectivos territórios, sempre tiveram, de si, uma imagem de sociedades pluriétnicas; contrariamente a países como, por exemplo, a França, que só recentemente foi obrigada a reconhecer a referida pluralidade no interior de sua sociedade.
Esses autores mostram como se dá a relação de interdependência entre nós e os outros num determinado contexto sócio-histórico. A diversidade cultural se constitui em um problema quando a convivência humana é marcada por conflitos motivados por preconceitos e discriminações étnicas, de gênero, de preferências sexuais, de gerações e outros. Quanto mais os conflitos aparecerem, mais eles exigem dos grupos uma ação coletiva com vistas o direito de ser diferente, evitando as padronizações.
Na contramão das explicações naturalistas dominantes no final do século XIX, os culturalistas vão insistir no fato de que aquilo que chamamos de natureza depende de uma interpretação que varia de uma cultura para outra. Para eles “a cultura interpreta a natureza e a transforma. Mesmo as funções vitais são informadas pela cultura: comer, dormir, copular, dar à luz (...), defecar, urinar (...) etc. todas essas práticas do corpo, absolutamente naturais, são profundamente determinadas em cada cultura particular”.
Nesta linha de raciocínio, um dos primeiros alvos da crítica culturalista foi a noção naturalística de raça, usada para designar e classificar grupos humanos a partir de um critério que se pensava vir, exclusivamente, da natureza. Por meio de tais critérios, muitas teorias raciais (leiam-se racistas) justificavam a supremacia das civilizações européias em relação às de outros continentes (formados por raças diferentes), alegando-se a referida superioridade dos europeus de acordo com as leis da natureza.
Foi a Antropologia Cultural quem mais defendeu um conjunto de conhecimento sobre a diversidade do gênero humano, no qual todas as formas de dominação, justificadas como sendo resultantes de uma lei qualquer da natureza (logo, imutáveis), passam a ser vistas como de fato são: um ato de pura arbitrariedade.
Embora não se possa atribuir, exclusivamente, às teorias culturalistas, a mudança de paradigma, provocada pelo multiculturalismo, desde a década de 1970, pode-se dizer que, do pondo de vista conceitual, elas embasam e preparam os movimentos de protestos contra os modelos vigentes de dominação cultural.
Foi a partir daí que negros, índios e outras minorias étnicas começam a detonar os critérios que os classificam como naturalmente inferiores aos grupos étnicos dominantes. Os achados culturalistas vão inspirar movimentos de mulheres, em várias partes do mundo, contra a suposta supremacia natural dos homens. O mesmo vai ocorrer com os homossexuais, que passam a produzir novas imagens de si mesmos e a combater preconceitos em relação a sua orientação sexual. Enfim, motivados por ideias mais questionadoras da diversidade humana, os grupos políticos culturalmente dominados buscam conquistar, paulatinamente, sua emancipação, abandonando os valores culturais que os oprimem. Pouco a pouco, o caráter étnico do multiculturalismo vai cedendo espaço para outros aspectos de dominação cultural, como gênero e orientação sexual.
Na discussão sobre a diferença não podemos deixar de nos atentar para o conceito de identidade. Vejamos o que nos diz Eugênio Trias na introdução do verbete Identidade Cultural[4]:
O mundo atual constitui a casa comum de nossa espécie compartilhada; porém nesta Aldeia Global convivem, ao mesmo tempo, as mais diversas culturas, com seus tempos próprios; com suas narrativas e histórias específicas. É preciso que nos perguntemos se esta casa comum é capaz de ser o palco de formas de mestiçagens e cruzamentos (sempre fecundos) entre etnias, culturas, povos, ou se prevalecerá o ameaçador modelo, teorizado por Huntington, do “choque das civilizações”. [...] Em nossos dias, dificilmente se pode traçar algum perfil intelectual, moral ou político, sem que se aceite o fato de que o mundo em que vivemos é comum a todos que nele vivemos. Porém esse comum se espalha e se esparrama em uma diversidade cultural que deve ser reconhecida (sejam quais forem suas características, ou suas formas de expressão).
Neste sentido, podemos afirmar que cada vez mais estamos indo em direção a um mundo complexo e mestiço. Entretanto, é possível que estejamos, também caminhando, para desgraça e horror de todos, o chamado “choque de civilizações”, onde os diferentes queiram mutuamente se eliminar. Consideramos que o multiculturalismo (a constatação da diferença) é a forma própria de uma condição comum que é plenamente humana. No entanto, esta condição de se conviver com as diferença se conquista na aventura de liberdade que todos os grupos protagonizam.



[1] JAPIASSU e MARCONDES. Dicionário de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008. (p. 75)
[2] SEMPRINI, A. Multiculturalismo. Bauru, SP: EDUSC, 1999. (p. 11)
[3] GONÇALVES e SILVA. O jogo das diferenças: O multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. (p. 25-27)
[4] In: CONIL, J. (Org.) Glosario para uma sociedad intercultural. Valência (Espanha): Bancaja, 2002. (p.192-193)

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