Marcelo
Andrade
Luiz
Câmara
Os dias
atuais estão, cada vez mais, caracterizados por uma “interligação mundial”, que tem afetado as nossas percepções mais
cotidianas. Esta maior interligação mundial tem se dado, principalmente, pelo
avanço das tecnologias de informação e comunicação, tais como o advento da
internet, as redes sociais, a TV a cabo e os inúmeros aparatos tecnológicos que
facilitam a relação entre as pessoas em diversas partes do planeta. Tal
fenômeno propicia encontros culturais que configuram uma nova realidade, mais
diversa e mais plural, cujo contexto (globalizado e multicultural) tem
favorecido o aparecimento de movimentos sociais que lutam pelo direito à
diferença. Estes movimentos apresentam reivindicações, muitas vezes, de forma
impetuosa e enérgica, que trazem à tona uma reflexão e uma disputa sobre o
lugar, os direitos e as representações sociais de grupos supostamente
minoritários em relação a uma determinada maioria.
No entanto, não
podemos esquecer que “maioria” e “minoria” são conceitos muito relativos e
ambíguos. Estes conceitos não possuem apenas um sentido quantitativo, numérico,
mas dizem respeito, também, às relações de poder, às vantagens e ao
reconhecimento que determinados grupos têm na sociedade.
Por exemplo,
numericamente as mulheres são a maioria na sociedade brasileira. Segundo dados
do IBGE, elas somam mais de 52% da nossa população. No entanto, as mulheres
recebem salários menores que os homens com a mesma formação e exercendo a mesma
função. Isso só se explica porque as mulheres – ainda que mais numerosas –
exercem menos poder e influência, bem como possuem menos reconhecimento social.
Neste sentido, as mulheres são consideradas uma minoria. O mesmo poderíamos
dizer sobre os negros no Brasil. Somando-se as pessoas que, segundo o IBGE, são
pretas (6,5%) e pardas (48,8%), teríamos 55,3% da população, enquanto apenas
43,8% se declaram brancas. Porém, sabemos que do ponto de vista do prestígio
social, os negros (pretos e pardos) estão em grande desvantagem, sejam nos
índices sobre renda, estudo, trabalho, moradia, acesso a direitos e serviços,
ou qualquer outro indicador social. Assim, tal como as mulheres, os negros são
numericamente a maioria da nossa população, mas estão em desvantagens sociais,
fato que os caracterizaria como uma minoria.
Poderíamos
dizer que as reivindicações com base na diferença[1]
trazem o apelo do reconhecimento social e da luta por justiça e direitos de
diversas grupos identitários, tais como: o negro, a mulher, o homossexual, o
indígena, o jovem, o idoso, o portador de necessidades especiais etc. O que estes grupos
ou estas identidades têm em comum? Por que a luta destes grupos e não de outros
se caracterizam como lutas multiculturais?
O multiculturalismo
O que
caracteriza as lutas multiculturais é a situação de exclusão social de grupos
considerados minorias do ponto de vista da distribuição do poder e do
reconhecimento social. No entanto, não é uma exclusão motivada apenas por
questões de classe social, ou seja, por questões econômicas. As pessoas, em
geral, não são excluídas simplesmente porque são pobres, ainda que a pobreza
seja um fator determinante de marginalização.
Aqueles
que são vistos como diferentes acabam excluídos porque possuem uma marca
identitária considerada socialmente inferior, seja esta marca o sexo, o gênero, a cor da pele, a etnia, a orientação sexual, a idade ou as
capacidades físicas e mentais. Esta marca identitária também é chamada de
“diferença” e é o que faz determinado indivíduo ou grupo estar fora do padrão
socialmente esperado.
Em geral,
o que motiva as lutas multiculturais é o reconhecimento de que os grupos
diferentes estão marginalizados dos sistemas de bens e de direitos, dos
mecanismos de poder e dos instrumentos de produção de significados em nossas
sociedades; é a constatação de que seu valor – enquanto seres humanos dignos de
respeito – é desconsiderado em função de algumas características particulares,
avaliadas negativamente em relação a padrões sociais arbitrariamente
estabelecidos.
Só podemos
entender as lutas multiculturais se reconhecermos que nesta sociedade os homens
são mais valorizados que as mulheres, que os brancos possuem mais vantagens
sociais que os negros, que os heterossexuais são socialmente mais aceitos que
os homossexuais. Se fingirmos que em nossa sociedade não existe racismo,
machismo, homofobia, entre outras discriminações, com facilidade cairemos no
engano de menosprezar o multiculturalismo e suas reivindicações.
Assim,
podemos perceber que a exclusão social se reproduz junto a determinados grupos porque eles trazem em sua
identidade – em sua maneira de ser e estar no mundo –
uma “diferença”, isto é, uma marca supostamente vergonhosa, que não é aceita
socialmente ou é vista como inferior com relação a outras marcas identitárias.
Tendo em vista esse
contexto complexo e, cautelosamente encoberto, não será
difícil entender o porquê de muitas reivindicações multiculturais estarem
marcadas pela indignação, pela revolta e por conflitos, algumas vezes, violentos. Sobre isso vale lembrar os versos de Bertolt Brecht[2]
que diz: “Do rio que tudo arrasta, diz-se
que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”. Ou
seja, aquele que se rebela contra a discriminação é considerado violento, mas a
situação de injustiça na qual ele é cotidianamente colocado não. Não haveria
algo de errado nesta lógica que tão facilmente reproduzimos?
Assim, o
multiculturalismo seria um fenômeno, mas seria também a expressão de uma luta,
contra as “margens que comprimem”,
centrada em duas frentes distintas e interligadas: redistribuição e
reconhecimento. Vejamos, ainda que brevemente, o que quer dizer lutar por
redistribuição e reconhecimento, numa perspectiva dos estudos sobre o outro
como diferente.
A luta por redistribuição
Nancy Fraser
é uma pensadora feminista que mais tem trabalhado esta distinção entre
redistribuição e reconhecimento[3].
Em primeiro lugar, lutar por redistribuição significa admitir que nossa
sociedade está organizada sobre a desigualdade. Bens, serviços, direitos e
poder estão desigualmente distribuídos entre os diferentes grupos que
configuram a sociedade. Neste sentido, as reivindicações multiculturais querem
redistribuir estes bens tendo como objetivo uma maior igualdade entre os grupos
sociais.
Quando,
por exemplo, argumenta-se que mais mulheres devem ascender a cargos políticos,
porque estes representam um importante espaço de poder e decisão, estamos
fazendo uma reivindicação multicultural. Quando se reivindica que mais negros
tenham acesso à universidade, porque o ensino superior propicia maior
integração no mercado de trabalho, estamos outra vez fazendo uma reivindicação
multicultural. Quando lutamos para que casais homoafetivos tenham direito
jurídico ao casamento, porque esta instituição garante direitos previdenciários,
herança e partilha de bens, estamos fazendo uma reivindicação multicultural.
Tais exemplos mostram como se pode buscar uma maior redistribuição de poder,
direitos e acesso a serviços para grupos socialmente marginalizados, isto é,
considerados minorias.
Muitos
são os que se opõem a estas políticas diferencialistas, argumentando que são
injustas, errôneas ou equivocadas. Os que se opõem a estas políticas são, às
vezes, chamados de “igualitaristas”. O argumento deles é que todos nós devemos
ser tratados como iguais, independente da cor, do sexo e gênero, da orientação sexual etc. Os igualitaristas não estariam
desconsiderando – inocente ou propositalmente – que, nesta sociedade,
infelizmente, não somos todos iguais? Que a sociedade brasileira é
profundamente desigual?[4]
Como,
então, tratar igualitariamente indivíduos e grupos que possuem acessos muito
desiguais aos bens, serviços e espaços de poder? Historicamente, o tratamento suposta
igual a grupos profundamente desiguais parece não ter dado muito efeito, visto
que até hoje perduram entre nós uma desigualdade de fato, apesar da secular
igualdade de discurso.
O que se
defende no multiculturalismo é que, numa sociedade desigual, é preciso tratar
com distinção – ou com discriminação positiva – aqueles que estão em situação
de desvantagem social, para que possam de fato alcançar um patamar mais
igualitário em relação aos outros grupos. Até porque, as desvantagens sociais
foram historicamente construídas e deverão, da mesma maneira, ser historicamente
desconstruídas.
Neste
sentido, os multiculturalistas – também chamados de diferencialistas – defendem
que este é o desafio: redistribuir bens, serviços e poder a fim de desconstruir
vantagens sociais injustas construídas historicamente a favor do grupo dominante
e contra os supostamente inferiores, os diferentes.
A luta por reconhecimento
A outra
frente de luta do multiculturalismo é o reconhecimento social, pois as
discriminações que sofrem os diferentes não se tratam apenas de privações de
melhores condições sócio-econômicas. É preciso desconstruir também todo um
sistema de produção de sentido, de significados, sobre estes grupos. Aqui a
luta é no espaço simbólico, isto é, no espaço das concepções e ideias que as
pessoas possuem sobre si mesmas, sobre os outros e sobre o mundo em que vivem.
Aqui estão incluídas as concepções sobre o certo e o errado, sobre o justo e o
injusto, ou seja, sobre os valores éticos e morais.
A falta de
reconhecimento social é um passo fundamental para a exclusão de um grupo. Voltemos
nossos olhos para um exemplo trágico: o nazismo. Judeus, ciganos, homossexuais
e deficientes físicos e mentais só puderam ser eliminados nas câmaras de gás
numa sociedade na qual tais grupos eram altamente rejeitados[5],
em uma sociedade em que sua dignidade enquanto seres humanos deixou de ser
reconhecida. Aqui percebemos a força de um preconceito, que é apenas uma idéia
mal concebida, e como ele se transforma em descriminação efetiva. Na verdade,
em discriminação assassina.
Se alguém achar
que o nazismo é algo já superado, precisa refletir sobre por que a cada ano se
matam milhares de jovens negros nas favelas e periferias urbanas das grandes
cidades brasileiras. Deveria pensar também por que a maioria da população
carcerária é negra. Seria apenas um efeito da exclusão sócio-econômica? E por
que os negros fracassam mais na escola do que brancos, mesmo quando pertencem à
mesma classe social?
Neste
sentido, os diferentes – ou os excluídos por sua diferença – precisam lutar
socialmente para afirmar que sua diferença não é inferioridade. Daí se explica
o Dia Internacional da Mulher, o Dia Nacional da Consciência Negra ou o Dia do
Orgulho Gay. Que sentido teria o dia do branco, do homem ou do heterossexual?[6]
Grupos socialmente dominantes não precisam se afirmar diante dos outros, pois
já possuem legitimidade e reconhecimento. São os excluídos que precisam dizer
que devem ser respeitados como iguais em suas diferenças.
Diferença e igualdade na educação.
É
importante lembrar que a argumentação ética dá ao ser humano em um lugar de
destaque. Ele é o único ser digno de respeito. Por conseguinte, quando, em
função de algumas características identitárias particulares, se desconsidera o
valor de alguém ou o julga como inferior a outro, comete-se um ato imoral, porque
deste modo se atribui diferentes valores a seres absolutamente valiosos, e,
como consequência, nega-se àqueles considerados inferiores os mesmos direitos
dos supostamente superiores. A partir do ponto de vista da ética, todos os
seres humanos devem ter sua dignidade respeitada, o que significa ter acesso a
condições de vida que os possibilitem desenvolver suas potencialidades e
expectativas, bem como ter reconhecimento e liberdade para se auto-determinar.
E como a educação se
coloca diante de toda esta temática? O que nós professores/as temos a ver com
tudo isso? Ora, é fácil perceber que a educação é um instrumento fundamental
tanto nas lutas de redistribuição de poder quanto nas de reconhecimento social.
A
escola e a universidade, por exemplo, pode dar acesso a importantes
instrumentos de redistribuição de poder nesta sociedade, tais como o
conhecimento sistematizado sobre os direitos, a reflexão ética e moral, o
domínio sobre a língua nacional, o conhecimento sobre a própria história, o
controle sobre argumentos científicos, a profissionalização etc. Por outro
lado, como instrumento de sociabilidade, podem ajudar também a construir o
reconhecimento social de diferentes grupos[7].
O lamentável é que a
educação pode também ser um importante mecanismo de exclusão, dando a alguns o
acesso aos mecanismos de poder (direito, língua, história, ciência, profissão
etc.) e negligenciando a outros. A escola e a universidade podem sociabilizar
com ênfase no respeito à diferença, mas podem também uniformizar (uniforme,
provas únicas, currículo único, a mesma maneira de ensinar para todos etc),
valorizando determinadas características identitárias e menosprezando outras.
Neste
sentido, é fundamental que se preste muita atenção sobre como é visto o outro –
o diferente – e sobre que lugar este diferente ocupa na maneira que são
realizados os projetos educativos. A diferença é um valor para os
educadores/as? A diferença é um problema ou uma riqueza na educação? Como ela é
vista cotidianamente nas salas de aula, nos planejamentos e avaliações que são
realizadas, nos conteúdos ensinados, nas atitudes que são adotadas? Tem sido
valorizada a diferença que constitui o outro, o diferente, ou trabalha-se para
a uniformização, querendo que os diferentes neguem sua identidade e se
comportem no padrão socialmente esperado?
Por serem a escola e a universidade
espaços privilegiados de relações sociais e de formação, os educadores
(professores, gestores e demais profissionais), deveriam estar atentos ao modo
como as diferenças são tratadas em seu interior. As instituições educacionais
recebem crianças, adolescentes, jovens e adultos, diante dos quais possuem
imensa responsabilidade educativa. Esta responsabilidade não se restringe aos
conteúdos curriculares explícitos, mas também àqueles conteúdos que são
ensinados, mesmo sem serem planejados (o chamado currículo oculto). Ambos os
currículos deveriam ser pensados levando-se em conta que os estudantes chegam
às instituições com diferentes identidades que estão em processo de construção
e reconstrução, e que o modo como estas diferenças são tratadas e administradas
pelos professores contribui, de forma decisiva, em sua afirmação ou negação.
Este é um compromisso moral frente às gerações que estão em processo de
construção de sua identidade e de uma postura frente às diferenças:
reconhecimento e respeito ou discriminação e exclusão.
[1] As “reivindicações com base na
diferença” também podem ser chamadas de reivindicações e/ou lutas
multiculturais, identitárias ou diferencialistas. Tais expressões serão
utilizadas, às vezes, como sinônimos.
[2] Poeta e dramaturgo alemão (*1898 +1956).
[3] FRASER, Nancy. Da redistribuição ao
reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós socialista, in: SOUZA, Jessé
(org.) Democracia hoje, Brasília:
UnB, 2002, p. 245-282.
[4] Ver “Síntese de Indicadores Sociais
2010”. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/
noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1717&id_pagina=1
[5] Veja a obra Eichmann em Jerusalem: um relato sobre a banalidade do mal (São
Paulo: Diagrama e Texto, 1983), de Hannah Arendt.
[6] Recentemente a Câmara Municipal de
São Paulo aprovou o projeto de lei 294/2005, do vereador Carlos Apolinário
(DEM), que institui, no município, o Dia do Orgulho Heterossexual. Após muitas
e polêmicas discussões na mídia, o prefeito Gilberto Kassab vetou o projeto.
[7] Ver BRASIL. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros curriculares
nacionais: pluralidade cultural / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF,
1997. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pluralidade.pdf>
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