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6 de out. de 2012

O “DIFERENTE” COMO DESAFIO


Marcelo Andrade
Luiz Câmara
Os dias atuais estão, cada vez mais, caracterizados por uma “interligação mundial”, que tem afetado as nossas percepções mais cotidianas. Esta maior interligação mundial tem se dado, principalmente, pelo avanço das tecnologias de informação e comunicação, tais como o advento da internet, as redes sociais, a TV a cabo e os inúmeros aparatos tecnológicos que facilitam a relação entre as pessoas em diversas partes do planeta. Tal fenômeno propicia encontros culturais que configuram uma nova realidade, mais diversa e mais plural, cujo contexto (globalizado e multicultural) tem favorecido o aparecimento de movimentos sociais que lutam pelo direito à diferença. Estes movimentos apresentam reivindicações, muitas vezes, de forma impetuosa e enérgica, que trazem à tona uma reflexão e uma disputa sobre o lugar, os direitos e as representações sociais de grupos supostamente minoritários em relação a uma determinada maioria.
No entanto, não podemos esquecer que “maioria” e “minoria” são conceitos muito relativos e ambíguos. Estes conceitos não possuem apenas um sentido quantitativo, numérico, mas dizem respeito, também, às relações de poder, às vantagens e ao reconhecimento que determinados grupos têm na sociedade.
Por exemplo, numericamente as mulheres são a maioria na sociedade brasileira. Segundo dados do IBGE, elas somam mais de 52% da nossa população. No entanto, as mulheres recebem salários menores que os homens com a mesma formação e exercendo a mesma função. Isso só se explica porque as mulheres – ainda que mais numerosas – exercem menos poder e influência, bem como possuem menos reconhecimento social. Neste sentido, as mulheres são consideradas uma minoria. O mesmo poderíamos dizer sobre os negros no Brasil. Somando-se as pessoas que, segundo o IBGE, são pretas (6,5%) e pardas (48,8%), teríamos 55,3% da população, enquanto apenas 43,8% se declaram brancas. Porém, sabemos que do ponto de vista do prestígio social, os negros (pretos e pardos) estão em grande desvantagem, sejam nos índices sobre renda, estudo, trabalho, moradia, acesso a direitos e serviços, ou qualquer outro indicador social. Assim, tal como as mulheres, os negros são numericamente a maioria da nossa população, mas estão em desvantagens sociais, fato que os caracterizaria como uma minoria.
Poderíamos dizer que as reivindicações com base na diferença[1] trazem o apelo do reconhecimento social e da luta por justiça e direitos de diversas grupos identitários, tais como: o negro, a mulher, o homossexual, o indígena, o jovem, o idoso, o portador de necessidades especiais etc. O que estes grupos ou estas identidades têm em comum? Por que a luta destes grupos e não de outros se caracterizam como lutas multiculturais?


O multiculturalismo
O que caracteriza as lutas multiculturais é a situação de exclusão social de grupos considerados minorias do ponto de vista da distribuição do poder e do reconhecimento social. No entanto, não é uma exclusão motivada apenas por questões de classe social, ou seja, por questões econômicas. As pessoas, em geral, não são excluídas simplesmente porque são pobres, ainda que a pobreza seja um fator determinante de marginalização.
Aqueles que são vistos como diferentes acabam excluídos porque possuem uma marca identitária considerada socialmente inferior, seja esta marca o sexo, o gênero, a cor da pele, a etnia, a orientação sexual, a idade ou as capacidades físicas e mentais. Esta marca identitária também é chamada de “diferença” e é o que faz determinado indivíduo ou grupo estar fora do padrão socialmente esperado.
Em geral, o que motiva as lutas multiculturais é o reconhecimento de que os grupos diferentes estão marginalizados dos sistemas de bens e de direitos, dos mecanismos de poder e dos instrumentos de produção de significados em nossas sociedades; é a constatação de que seu valor – enquanto seres humanos dignos de respeito – é desconsiderado em função de algumas características particulares, avaliadas negativamente em relação a padrões sociais arbitrariamente estabelecidos.
Só podemos entender as lutas multiculturais se reconhecermos que nesta sociedade os homens são mais valorizados que as mulheres, que os brancos possuem mais vantagens sociais que os negros, que os heterossexuais são socialmente mais aceitos que os homossexuais. Se fingirmos que em nossa sociedade não existe racismo, machismo, homofobia, entre outras discriminações, com facilidade cairemos no engano de menosprezar o multiculturalismo e suas reivindicações.
Assim, podemos perceber que a exclusão social se reproduz junto a determinados grupos porque eles trazem em sua identidade – em sua maneira de ser e estar no mundo – uma “diferença”, isto é, uma marca supostamente vergonhosa, que não é aceita socialmente ou é vista como inferior com relação a outras marcas identitárias.
Tendo em vista esse contexto complexo e, cautelosamente encoberto, não será difícil entender o porquê de muitas reivindicações multiculturais estarem marcadas pela indignação, pela revolta e por conflitos, algumas vezes, violentos. Sobre isso vale lembrar os versos de Bertolt Brecht[2] que diz: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”. Ou seja, aquele que se rebela contra a discriminação é considerado violento, mas a situação de injustiça na qual ele é cotidianamente colocado não. Não haveria algo de errado nesta lógica que tão facilmente reproduzimos?
Assim, o multiculturalismo seria um fenômeno, mas seria também a expressão de uma luta, contra as “margens que comprimem”, centrada em duas frentes distintas e interligadas: redistribuição e reconhecimento. Vejamos, ainda que brevemente, o que quer dizer lutar por redistribuição e reconhecimento, numa perspectiva dos estudos sobre o outro como diferente.

A luta por redistribuição
Nancy Fraser é uma pensadora feminista que mais tem trabalhado esta distinção entre redistribuição e reconhecimento[3]. Em primeiro lugar, lutar por redistribuição significa admitir que nossa sociedade está organizada sobre a desigualdade. Bens, serviços, direitos e poder estão desigualmente distribuídos entre os diferentes grupos que configuram a sociedade. Neste sentido, as reivindicações multiculturais querem redistribuir estes bens tendo como objetivo uma maior igualdade entre os grupos sociais.
Quando, por exemplo, argumenta-se que mais mulheres devem ascender a cargos políticos, porque estes representam um importante espaço de poder e decisão, estamos fazendo uma reivindicação multicultural. Quando se reivindica que mais negros tenham acesso à universidade, porque o ensino superior propicia maior integração no mercado de trabalho, estamos outra vez fazendo uma reivindicação multicultural. Quando lutamos para que casais homoafetivos tenham direito jurídico ao casamento, porque esta instituição garante direitos previdenciários, herança e partilha de bens, estamos fazendo uma reivindicação multicultural. Tais exemplos mostram como se pode buscar uma maior redistribuição de poder, direitos e acesso a serviços para grupos socialmente marginalizados, isto é, considerados minorias.
Muitos são os que se opõem a estas políticas diferencialistas, argumentando que são injustas, errôneas ou equivocadas. Os que se opõem a estas políticas são, às vezes, chamados de “igualitaristas”. O argumento deles é que todos nós devemos ser tratados como iguais, independente da cor, do sexo e gênero, da orientação sexual etc. Os igualitaristas não estariam desconsiderando – inocente ou propositalmente – que, nesta sociedade, infelizmente, não somos todos iguais? Que a sociedade brasileira é profundamente desigual?[4]
Como, então, tratar igualitariamente indivíduos e grupos que possuem acessos muito desiguais aos bens, serviços e espaços de poder? Historicamente, o tratamento suposta igual a grupos profundamente desiguais parece não ter dado muito efeito, visto que até hoje perduram entre nós uma desigualdade de fato, apesar da secular igualdade de discurso.
O que se defende no multiculturalismo é que, numa sociedade desigual, é preciso tratar com distinção – ou com discriminação positiva – aqueles que estão em situação de desvantagem social, para que possam de fato alcançar um patamar mais igualitário em relação aos outros grupos. Até porque, as desvantagens sociais foram historicamente construídas e deverão, da mesma maneira, ser historicamente desconstruídas.
Neste sentido, os multiculturalistas – também chamados de diferencialistas – defendem que este é o desafio: redistribuir bens, serviços e poder a fim de desconstruir vantagens sociais injustas construídas historicamente a favor do grupo dominante e contra os supostamente inferiores, os diferentes.

A luta por reconhecimento
A outra frente de luta do multiculturalismo é o reconhecimento social, pois as discriminações que sofrem os diferentes não se tratam apenas de privações de melhores condições sócio-econômicas. É preciso desconstruir também todo um sistema de produção de sentido, de significados, sobre estes grupos. Aqui a luta é no espaço simbólico, isto é, no espaço das concepções e ideias que as pessoas possuem sobre si mesmas, sobre os outros e sobre o mundo em que vivem. Aqui estão incluídas as concepções sobre o certo e o errado, sobre o justo e o injusto, ou seja, sobre os valores éticos e morais.
A falta de reconhecimento social é um passo fundamental para a exclusão de um grupo. Voltemos nossos olhos para um exemplo trágico: o nazismo. Judeus, ciganos, homossexuais e deficientes físicos e mentais só puderam ser eliminados nas câmaras de gás numa sociedade na qual tais grupos eram altamente rejeitados[5], em uma sociedade em que sua dignidade enquanto seres humanos deixou de ser reconhecida. Aqui percebemos a força de um preconceito, que é apenas uma idéia mal concebida, e como ele se transforma em descriminação efetiva. Na verdade, em discriminação assassina.
Se alguém achar que o nazismo é algo já superado, precisa refletir sobre por que a cada ano se matam milhares de jovens negros nas favelas e periferias urbanas das grandes cidades brasileiras. Deveria pensar também por que a maioria da população carcerária é negra. Seria apenas um efeito da exclusão sócio-econômica? E por que os negros fracassam mais na escola do que brancos, mesmo quando pertencem à mesma classe social?
Neste sentido, os diferentes – ou os excluídos por sua diferença – precisam lutar socialmente para afirmar que sua diferença não é inferioridade. Daí se explica o Dia Internacional da Mulher, o Dia Nacional da Consciência Negra ou o Dia do Orgulho Gay. Que sentido teria o dia do branco, do homem ou do heterossexual?[6] Grupos socialmente dominantes não precisam se afirmar diante dos outros, pois já possuem legitimidade e reconhecimento. São os excluídos que precisam dizer que devem ser respeitados como iguais em suas diferenças.

Diferença e igualdade na educação.
É importante lembrar que a argumentação ética dá ao ser humano em um lugar de destaque. Ele é o único ser digno de respeito. Por conseguinte, quando, em função de algumas características identitárias particulares, se desconsidera o valor de alguém ou o julga como inferior a outro, comete-se um ato imoral, porque deste modo se atribui diferentes valores a seres absolutamente valiosos, e, como consequência, nega-se àqueles considerados inferiores os mesmos direitos dos supostamente superiores. A partir do ponto de vista da ética, todos os seres humanos devem ter sua dignidade respeitada, o que significa ter acesso a condições de vida que os possibilitem desenvolver suas potencialidades e expectativas, bem como ter reconhecimento e liberdade para se auto-determinar.
E como a educação se coloca diante de toda esta temática? O que nós professores/as temos a ver com tudo isso? Ora, é fácil perceber que a educação é um instrumento fundamental tanto nas lutas de redistribuição de poder quanto nas de reconhecimento social.
            A escola e a universidade, por exemplo, pode dar acesso a importantes instrumentos de redistribuição de poder nesta sociedade, tais como o conhecimento sistematizado sobre os direitos, a reflexão ética e moral, o domínio sobre a língua nacional, o conhecimento sobre a própria história, o controle sobre argumentos científicos, a profissionalização etc. Por outro lado, como instrumento de sociabilidade, podem ajudar também a construir o reconhecimento social de diferentes grupos[7].
O lamentável é que a educação pode também ser um importante mecanismo de exclusão, dando a alguns o acesso aos mecanismos de poder (direito, língua, história, ciência, profissão etc.) e negligenciando a outros. A escola e a universidade podem sociabilizar com ênfase no respeito à diferença, mas podem também uniformizar (uniforme, provas únicas, currículo único, a mesma maneira de ensinar para todos etc), valorizando determinadas características identitárias e menosprezando outras.
            Neste sentido, é fundamental que se preste muita atenção sobre como é visto o outro – o diferente – e sobre que lugar este diferente ocupa na maneira que são realizados os projetos educativos. A diferença é um valor para os educadores/as? A diferença é um problema ou uma riqueza na educação? Como ela é vista cotidianamente nas salas de aula, nos planejamentos e avaliações que são realizadas, nos conteúdos ensinados, nas atitudes que são adotadas? Tem sido valorizada a diferença que constitui o outro, o diferente, ou trabalha-se para a uniformização, querendo que os diferentes neguem sua identidade e se comportem no padrão socialmente esperado?
            Por serem a escola e a universidade espaços privilegiados de relações sociais e de formação, os educadores (professores, gestores e demais profissionais), deveriam estar atentos ao modo como as diferenças são tratadas em seu interior. As instituições educacionais recebem crianças, adolescentes, jovens e adultos, diante dos quais possuem imensa responsabilidade educativa. Esta responsabilidade não se restringe aos conteúdos curriculares explícitos, mas também àqueles conteúdos que são ensinados, mesmo sem serem planejados (o chamado currículo oculto). Ambos os currículos deveriam ser pensados levando-se em conta que os estudantes chegam às instituições com diferentes identidades que estão em processo de construção e reconstrução, e que o modo como estas diferenças são tratadas e administradas pelos professores contribui, de forma decisiva, em sua afirmação ou negação. Este é um compromisso moral frente às gerações que estão em processo de construção de sua identidade e de uma postura frente às diferenças: reconhecimento e respeito ou discriminação e exclusão.



[1] As “reivindicações com base na diferença” também podem ser chamadas de reivindicações e/ou lutas multiculturais, identitárias ou diferencialistas. Tais expressões serão utilizadas, às vezes, como sinônimos.
[2] Poeta e dramaturgo alemão (*1898 +1956).
[3] FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós socialista, in: SOUZA, Jessé (org.) Democracia hoje, Brasília: UnB, 2002, p. 245-282.
[4] Ver “Síntese de Indicadores Sociais 2010”.  Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/ noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1717&id_pagina=1
[5] Veja a obra Eichmann em Jerusalem: um relato sobre a banalidade do mal (São Paulo: Diagrama e Texto, 1983), de Hannah Arendt.
[6] Recentemente a Câmara Municipal de São Paulo aprovou o projeto de lei 294/2005, do vereador Carlos Apolinário (DEM), que institui, no município, o Dia do Orgulho Heterossexual. Após muitas e polêmicas discussões na mídia, o prefeito Gilberto Kassab vetou o projeto.
[7] Ver BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pluralidade.pdf>

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