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28 de nov. de 2012

MÍNIMOS E MÁXIMOS MORAIS.


Marcelo Andrade

Uma das características das sociedades contemporâneas é a possibilidade de contato entre diferentes grupos e culturas. Neste sentido, são muitos os modos de compreender e interpretar o certo e o errado, isto é, os códigos morais. É importante notar que estes códigos morais podem estar presentes em um mesmo grupo social ou em diferentes grupos que se relacionam entre si. É nesse contexto que surge o embate entre o que denominamos universalismo ético, ou seja, a defesa da existência de alguns valores que deveriam ser aceitos como referência para todos os códigos morais, e o relativismo ético, que defende que cada cultura possui seus valores particulares, os quais devem ser reconhecidos como válidos e tomados como referência para orientar o agir de seus membros.

Ética: entre mínimos e máximos.
A filósofa espanhola Adela Cortina defende uma ética cidadã a partir de um contexto de diversidade de códigos morais e de uma demanda histórica de elaborar, no campo do pluralismo moral, uma proposta que articule os acordos de justiça, que devem ser resultado de um consenso racionável, e as concepções de vida boa ou projetos de vida feliz. Neste sentido, a ética estaria justamente num ponto de articulação entre “mínimos de justiça” e “máximos de felicidade”, entre o justo e o bom.

De fato a convivência de distintas morais que pretendem universalidade tem sido e é possível sobre a base de uma ética cidadã, que se compõe de uns mínimos compartilhados entre as distintas ofertas de “máximos”, entre as distintas propostas de felicidade. À felicidade se convida, enquanto que os mínimos de justiça da ética civil se exigem. Ninguém pode exigir que o outro viva segundo um modelo de felicidade: pode lhe convidar a segui-lo. Porém, uma sociedade pode exigir dos cidadãos que vivam segundo umas orientações de justiça. Por isso é possível de fato o pluralismo moral: porque já há uns mínimos de justiça (liberdade, igualdade, diálogo, respeito) compartilhados pelas morais de máximos. E esta moral cidadã orienta a legalidade, que não só se exige, senão que se impõe, se for necessário, mediante sanção.[1]

Neste sentido, uma ética cidadã visa constatar e promover, tanto no campo da ação prática quanto da teoria moral, as aproximações entre o que é justo e o que é bom. Segundo a filósofa espanhola, é quase impossível verificar o que é justo se não tivermos uma idéia dos ideais de uma vida digna, assim como é impossível traçar um ideal de felicidade sem levar em conta as exigências de justiça.
Reconhecendo a necessária inter-relação entre o bom e o justo, é importante também a delimitação dos conceitos. O justo tem a ver com o que é exigível e como tal se torna obrigação moral para qualquer ser racional que queira pensar e agir moralmente. “Donde podemos concluir que é moralmente justo aquilo que satisfaz aos interesses universalizáveis”[2].
Moralmente justo é algo que se faz sempre necessário e assim universalizável para todo ser racional que queira moral, isto é, que não queira estar abaixo de uns mínimos de justiça que garantem a dignidade humana. Nesta perspectiva, necessário e universal significam os mandatos que se fazem obrigatórios para todos que se queiram morais. Moralmente justo é algo que está fora da contingência, da efemeridade. Trata-se de algo que “deve ser”, porque se não for, estaremos abaixo da estatura moral que requer a dignidade humana.
Por sua vez, o bom é aquilo que causa felicidade, ou seja, auto-realização por alcançar os fins que nos propusemos intencionalmente ou não. O bom não pode ser exigido dos outros seres racionais, pois se trata fundamentalmente de uma realização subjetiva, pessoal e intransferível. É facilmente identificável que algo pode ser bom para um e pode não ser para outros. O que causa felicidade em um pode não causar em outros. A felicidade é do campo da subjetividade, variável de acordo com cada ser humano em particular.
Sendo assim, as éticas de justiça ou éticas de mínimos se ocupam da dimensão universalizável do fenômeno moral, isto é, daqueles deveres de justiça exigíveis de qualquer ser racional. Estes deveres são constituídos de exigências mínimas. Ao contrário, as éticas de felicidade pretendem oferecer ideais de uma vida digna e boa. Estes ideais organizam e englobam o conjunto de bens que os seres humanos usufruem como fonte da maior felicidade possível. São pois, éticas de máximos, que aconselham a seguir o modelo e convidam-nos a tomá-lo como norma de conduta, mas não podem ser exigidos, visto que a felicidade é tema de aconselhamento e convite, e não de exigência.

Entre o bom e o justo.
A fim de apresentar – ainda que de maneira resumida e preliminar – uma síntese e uma articulação entre a felicidade e a justiça, apresentamos, a seguir, um quadro comparativo com algumas ideias chaves que servem de referência, definem e delimitam fronteiras entre os dois conceitos. Tal quadro não tem, absolutamente, o objetivo de esgotar a discussão entre o bom e o justo e muito menos a pretensão de entendê-los como opostos que se atraem e se nutrem através de uma polarização de significados.


justIÇA
FELICIDADE
Ética de Mínimos
Ética de Máximos
Justo
Bom
Dever
Finalidade
Deontologismo
Teleologismo
Normas
Conselho
Exigência
Convite
Obrigação
Deleite
Compromisso (válido)
Projeto (felicitante)
Mandatos
Possibilidades
Prescrição
Flexibilização
Lei
Virtude
Contrato
Aliança
Universalidade
Pluralidade
Legalidade
Gratuidade
Direito / Política
Religiões / Sagrado
Coação / Sanção
Graça / Dom
Ideal da razão
Ideal da imaginação
Meta do cidadão
Meta da pessoa humana
OBS.: Quadro elaborado por Marcelo Andrade.

Algumas das correlações apresentadas no quadro são bastante claras. No entanto, outras necessitam um tratamento mais específico. Assim, faz-se necessário algumas observações.
Em primeiro lugar, há que insistir na idéia de complementaridade entre os dois conceitos, ou melhor, mais do que dois conceitos, estamos tratando da complementaridade das duas mais importantes capacidades morais do ser humano: o sentido de justiça e a concepção de bem, o que significaria afirmar que os seres humanos são essencialmente morais (que seria o mesmo que dizer essencialmente humanos) quando conseguem ser justos e felizes.
Em segundo lugar, cabe também insistir no caráter intersubjetivo das normas, pois quando se defende as capacidades morais não se está simplesmente afirmando a capacidade humana de obedecer, mas de construir regras de convivência através do diálogo. Ainda que a palavra “norma” provoque certa rejeição em setores supostamente mais liberais de nossas sociedades, há que recordar que sem normas não há convivência social possível.
O terceiro argumento sobre a articulação dos dois campos do quadro apresentado é sobre a relação entre normas morais e a confiança no projeto de ser uma pessoa feliz, isto é, a tarefa de cumprir deveres morais requer o desenvolvimento da auto-estima, pois “uma razoável confiança em si mesmo e no valor dos próprios projetos são necessários para viver uma vida verdadeiramente humana”[3].


[1] CORTINA, Adela. Ética mínima: introducción a la filosofía práctica, Madrid: Editorial Tecnos, 1986, p. 167

[2] CORTINA, Adela. Ética civil e religião, São Paulo: Paulinas, 1996.

[3] CORTINA, Adela. Ética aplicada y democracia radical, Madrid: Tecnos, 1993.

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