Marcelo Andrade
Uma das características
das sociedades contemporâneas é a possibilidade de contato entre diferentes
grupos e culturas. Neste sentido, são muitos os modos de compreender e
interpretar o certo e o errado, isto é, os códigos morais. É importante notar
que estes códigos morais podem estar presentes em um mesmo grupo social ou em
diferentes grupos que se relacionam entre si. É nesse contexto que surge o
embate entre o que denominamos universalismo
ético, ou seja, a defesa da existência de alguns valores que deveriam ser
aceitos como referência para todos os códigos morais, e o relativismo ético, que defende que cada cultura possui seus valores
particulares, os quais devem ser reconhecidos como válidos e tomados como
referência para orientar o agir de seus membros.
Ética:
entre mínimos e máximos.
A filósofa espanhola Adela Cortina
defende uma ética cidadã a partir de
um contexto de diversidade de códigos morais e de uma demanda histórica de
elaborar, no campo do pluralismo moral, uma proposta que articule os acordos de
justiça, que devem ser resultado de um consenso racionável, e as concepções de
vida boa ou projetos de vida feliz. Neste sentido, a ética estaria justamente
num ponto de articulação entre “mínimos de justiça” e “máximos de
felicidade”, entre o justo e o bom.
De fato a
convivência de distintas morais que pretendem universalidade tem sido e é
possível sobre a base de uma ética cidadã, que se compõe de uns mínimos
compartilhados entre as distintas ofertas de “máximos”, entre as distintas
propostas de felicidade. À felicidade se convida, enquanto que os
mínimos de justiça da ética civil se exigem. Ninguém pode exigir que o
outro viva segundo um modelo de felicidade: pode lhe convidar a segui-lo.
Porém, uma sociedade pode exigir dos cidadãos que vivam segundo umas
orientações de justiça. Por isso é possível de fato o pluralismo moral:
porque já há uns mínimos de justiça (liberdade, igualdade, diálogo, respeito)
compartilhados pelas morais de máximos. E esta moral cidadã orienta a
legalidade, que não só se exige, senão que se impõe, se for necessário,
mediante sanção.[1]
Neste sentido, uma ética cidadã visa constatar e
promover, tanto no campo da ação prática quanto da teoria moral, as
aproximações entre o que é justo e o que é bom. Segundo a filósofa espanhola, é quase impossível verificar o que é
justo se não tivermos uma idéia dos ideais de uma vida digna, assim como é
impossível traçar um ideal de felicidade sem levar em conta as exigências de
justiça.
Reconhecendo a
necessária inter-relação entre o bom e o justo, é importante também a
delimitação dos conceitos. O justo tem a ver com o que é exigível e como tal se
torna obrigação moral para qualquer ser racional que queira pensar e agir
moralmente. “Donde podemos concluir que é moralmente justo aquilo que
satisfaz aos interesses universalizáveis”[2].
Moralmente justo é
algo que se faz sempre necessário e assim universalizável para todo ser
racional que queira moral, isto é, que não queira estar abaixo de uns mínimos de justiça que garantem a
dignidade humana. Nesta perspectiva, necessário e universal significam os
mandatos que se fazem obrigatórios para todos que se queiram morais. Moralmente
justo é algo que está fora da contingência, da efemeridade. Trata-se de algo
que “deve ser”, porque se não for, estaremos abaixo da estatura moral
que requer a dignidade humana.
Por sua vez, o bom é
aquilo que causa felicidade, ou seja, auto-realização por alcançar os fins que
nos propusemos intencionalmente ou não. O bom não pode ser exigido dos outros
seres racionais, pois se trata fundamentalmente de uma realização subjetiva,
pessoal e intransferível. É facilmente identificável que algo pode ser bom para
um e pode não ser para outros. O que causa felicidade em um pode não causar em outros. A felicidade é
do campo da subjetividade, variável de acordo com cada ser humano em
particular.
Sendo assim, as éticas de justiça ou éticas de mínimos se ocupam
da dimensão universalizável do fenômeno moral, isto é, daqueles deveres de
justiça exigíveis de qualquer ser racional. Estes deveres são constituídos de
exigências mínimas. Ao contrário, as éticas de felicidade pretendem
oferecer ideais de uma vida digna e boa. Estes ideais organizam e englobam o
conjunto de bens que os seres humanos usufruem como fonte da maior felicidade
possível. São pois, éticas de
máximos, que aconselham a seguir o modelo e convidam-nos a tomá-lo como norma
de conduta, mas não podem ser exigidos, visto que a felicidade é tema de
aconselhamento e convite, e não de exigência.
Entre
o bom e o justo.
A fim de apresentar –
ainda que de maneira resumida e preliminar – uma síntese e uma articulação
entre a felicidade e a justiça, apresentamos, a seguir, um quadro comparativo com algumas
ideias chaves que servem de referência, definem e delimitam fronteiras entre os
dois conceitos. Tal quadro não tem, absolutamente, o objetivo de esgotar a
discussão entre o bom e o justo e muito menos a pretensão de entendê-los como
opostos que se atraem e se nutrem através de uma polarização de significados.
justIÇA
|
FELICIDADE
|
Ética de Mínimos
|
Ética de Máximos
|
Justo
|
Bom
|
Dever
|
Finalidade
|
Deontologismo
|
Teleologismo
|
Normas
|
Conselho
|
Exigência
|
Convite
|
Obrigação
|
Deleite
|
Compromisso (válido)
|
Projeto (felicitante)
|
Mandatos
|
Possibilidades
|
Prescrição
|
Flexibilização
|
Lei
|
Virtude
|
Contrato
|
Aliança
|
Universalidade
|
Pluralidade
|
Legalidade
|
Gratuidade
|
Direito / Política
|
Religiões / Sagrado
|
Coação / Sanção
|
Graça / Dom
|
Ideal da razão
|
Ideal da imaginação
|
Meta do cidadão
|
Meta da pessoa humana
|
OBS.: Quadro elaborado por Marcelo
Andrade.
Algumas das
correlações apresentadas no quadro são bastante claras. No entanto, outras
necessitam um tratamento mais específico. Assim, faz-se necessário algumas
observações.
Em primeiro lugar, há
que insistir na idéia de complementaridade entre os dois conceitos, ou melhor,
mais do que dois conceitos, estamos tratando da complementaridade das duas mais
importantes capacidades morais do ser humano: o sentido de
justiça e a concepção de bem,
o que significaria afirmar que os seres humanos são essencialmente morais (que
seria o mesmo que dizer essencialmente humanos) quando conseguem ser justos e
felizes.
Em segundo lugar, cabe
também insistir no caráter intersubjetivo das normas, pois quando se defende as
capacidades morais não se está simplesmente afirmando a capacidade humana de
obedecer, mas de construir regras de convivência através do diálogo. Ainda que
a palavra “norma” provoque certa rejeição em setores supostamente mais
liberais de nossas sociedades, há que recordar que sem normas não há
convivência social possível.
O terceiro argumento
sobre a articulação dos dois campos do quadro apresentado é sobre a relação
entre normas morais e a confiança no projeto de ser uma pessoa feliz, isto é, a
tarefa de cumprir deveres morais requer o desenvolvimento da auto-estima, pois “uma
razoável confiança em si mesmo e no valor dos próprios projetos são necessários
para viver uma vida verdadeiramente humana”[3].
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